A história da casa onde nasceu Gonçalves Dias, nas matas do Jatobá #GD200

Quase um ano após o grito de D. Pedro I às margens do Ipiranga, é que a Vila de Caxias* passaria, enfim, a integrar o Brasil independente. Às 10:30h, daquele 01 de Agosto de 1823, os caxienses puderam ver hasteado no Morro das Tabocas (atual Morro do Alecrim) o lábaro verde e amarelo do Império do Brasil. Caxias foi a penúltima cidade* brasileira a aderir à Independência.

*Em 1823, Caxias ainda era denominada “Vila”, haja vista que só em 1836 é que fora elevada à categoria de Cidade.

Naquele dia, as forças independentes, formadas por brasileiros das Províncias do Ceará e Piauí, adentraram de forma triunfante em Caxias. Do outro lado, tendo à frente o comandante Luís Manuel de Mesquita, as tropas portuguesas depuseram as armas, desceram do morro para o campo de São José, onde, em forma, entregaram-se aos vencedores e procedeu-se a prisão do major Fidié, que havia sido enviado para combater os revoltosos independentes. Com a batalha já perdida, o militar não esboçou qualquer resistência, sendo levado para cidade de Oeiras (PI). Ato contínuo, o quartel do Morro das Tabocas foi ocupado pelas forças do capitão João da Costa Alecrim (que viria dar nome ao morro).

Como muitos portugueses – contrários a independência da cidade – habitavam Caxias, os partidários da causa independente estabeleceram condições de rendição: “que os proprietários da vila de Caxias, e termo, que não tiverem prestado donativos à causa pátria, serão obrigados a uma contribuição para pagamento do exército, que a sua toleima, o seu criminoso aferro às cortes de Portugal, e os procedimentos hostis do pérfido Fidié chamaram a este lugar.”

E entre esses multados estavam os irmãos portugueses Gonçalves Dias, João Manuel em um conto de réis e Estêvão em cem mil réis, sendo eles dos poucos que preferiram fugir a pagar. Por temor de represálias, o comerciante João Manuel, residente à rua do Cisco, optou por fugir para as terras que possuía nas matas do Jatobá, no sítio Boavista, em área pertencente à Vila de Caxias, distante cerca de 70 a 80 quilômetros. Para o seu refúgio, levou também a sua companheira e criada, de 25 anos de idade, Vicência Ferreira, cuja a gravidez, já em seus últimos momentos, deve ter dificultado ainda mais a viagem de quatorze léguas.

E assim, na casa das matas do Jatobá, dez dias depois, no dia 10 de agosto de 1823, veio ao mundo o poeta maior da princesa, Antônio Gonçalves Dias; fruto da mistura do sangue lusitano e mulato. A fazenda de João Manuel não era “daquelas cujas extensas casarias, cobertas de telhas, com varandas nas fachadas principais”. Pelo contrário, segundo o biógrafo e amigo de Gonçalves Dias, Henriques Leal, o imóvel era composto por um “tosca choupana de folhas de palmeira, como soem ser fabricados os nossos tijupabas [palavra indígena para pequenas cabanas], na mais completa solidão, no sombrio da mata virgem.”

Com poucos dias de nascido, o pequeno logo achou-se reduzido à só companhia da mãe, pois, mal refeita do parto, logo João Manuel, não confiando na segurança daquele local, viajara escondido dos independentes para São Luis, e dali para Portugal, onde permaneceu por uns dois anos. Apenas em 1825, quando o patriarca retorna à Caxias, é que mãe e filho voltam a residir à Rua do Cisco (Atual Fause Simão; mais conhecida como Benedito Leite), no centro da cidade.

Os eventos acima narrados são o pouco do que se sabe sobre essa fase da vida do poeta nas matas do Jatobá. Com o falecimento de João Manuel em 1837, e de sua esposa (O português nunca casou-se com Vicência, tendo abandonado a companheira, por volta, de 1829), Adelaide Dias, em 1877, é provável que o sítio tenha sido abandonado pela família. Ao que se sabe, a fazenda só voltou a aparecer no radar dos caxienses no ano do centenário de Gonçalves Dias, em 1923.

Nesse ano, era então prefeito de Caxias o sr. Francisco Vilanova. Em comemoração ao centenário do poeta, a autoridade resolveu localizar o antigo sítio Boavista e a respectiva “Casa Grande”. Guiado por moradores das vizinhanças do local, conhecedores do terreno, encontrou Vilanova as ruínas: restos de parede, alguns esteios de aroeira ainda de pé, cacos de louças em torno das ruínas e perto de um grande poço ou cisterna, quase completamente aterrado. Tudo estava localizado no meio do mato alto e denso, o qual mandou abater, pondo a descoberto as ruínas, de onde trouxe como recordação de valor, um batente ainda bem conservado, da porta de um dos aposentos interiores.

O prefeito dizia ter a intenção de comprar para o município aquelas terras, que, além do grande valor histórico, eram fertilíssimas; próprias para o trabalho agrícola, bem como para a fundação de uma escola. Contudo, ao deixar a chefia do executivo, ninguém mais cogitou por em prática a ideia, e o projeto caíra no esquecimento.

Ao entrar em contato com a historiadora caxiense Joseneyde Vilanova, que residiu por anos na residência que pertenceu a Francisco, no centro de Caxias, esta me relatou desconhecer a existência do batente recuperado pelo prefeito; haja vista não ter encontrado na residência nenhuma peça solta guardada como relíquia. 

A descrição fornecida por Vilanova acabou gerando um grande debate. Acontece que, o prefeito relatou ter encontrado as ruínas do imóvel, havendo, inclusive, localizado um batente; o que entra em confronto com a descrição de Henriques Leal, já que, se a casa fosse realmente uma “tosca choupana de folhas de palmeira” como relatou; no ano de 1923, cem anos depois, seria muito improvável ainda existirem vestígios, quanto mais um batente, que supõe uma construção mais sólida.

Ao deparar-se com o dilema, uma das mais famosas biógrafas do poeta, Lúcia Miguel Pereira (1901 – 1959), em seu livro “A Vida de Gonçalves Dias”, dissertou: “Entretanto, como só a tradição oral, ora por vezes falha, indicou ao sr. Vilanova o lugar do nascimento do poeta, nada se pode concluir com segurança. Não é, de resto, impossível que, embora possuindo boa casa de moradia na Boavista, cousa que lhe permitiria certamente a sua situação de comerciante próspero, João Manuel, medroso, a tivesse evitado, indo esconder-se nalguma cabana mais retirada nas suas terras.”

Dúvidas à parte, o certo é que o que ainda existia do imóvel continuou se deteriorando ainda mais, com o passar dos anos. Mais de vinte anos depois, em 1945, em artigo intitulado “A Casa de Gonçalves Dias”, o ex-prefeito de Caxias, Gentil Homem da Silva Brasil, publicou um alerta para a urgente necessidade de se reconstruir a casa do Jatobá para ser utilizada como um memorial. À época do texto, já não existia praticamente nada do que um dia fora aquela casa; e, apesar de ainda residirem nas proximidades daquela área primos e sobrinhos de G. Dias, de diferentes graus, estes eram muito pobres, o que os impossibilitava, ainda que desejassem, de realizar qualquer tipo de intervenção. Sobre o local, a autoridade escreveu:

“Conversamos novamente sobre a vida de Gonçalves Dias, que ele conhece bem. Do mesmo modo conhece o local onde existira a mansão nata do poeta. Lá estão os sinais evidentes da fazenda. O escalvado branco e duro do terreiro; as palmeiras centenárias mais além, cercadas de suas múltiplas descendentes e onde a copa verdejante tecem os seus ninhos os sabiás também imortalizados pelo exímio cantor das selvas.” (Clique aqui para ler o texto completo). Infelizmente, como se sabe, o projeto não viu a luz do dia.

Em 1949, após ser eleito presidente do “Centro Cultural Gonçalves Dias” (entidade ludovicense formada, em 1945, por jovens intelectuais maranhenses, da qual faziam parte, dentre outros, os escritores Ferreira Gullar e Lago Burnett), o prof. Nascimento Morais Filho, fervoroso admirador do poeta, volta a citar as terras do Jatobá. Ao ser questionado sobre os planos para aquele ano, o professor respondeu: “já reivindicamos para o nosso patrimônio histórico o lugar onde nasceu Gonçalves Dias, lugar que se achava quase que praticamente perdido nas matas do Jatobá”. Não se sabe ao certo quais eram os projetos do referido Centro, bem como que fim levou a ideia, mas é muito provável que esta, também, não tenha saído do papel.

Só em 1964, ano do centenário de morte de Gonçalves Dias, é que as coisas começam a tomar novos rumos. Nesse ano, o prefeito de Caxias, Numa Pereira, juntamente ao prefeito do município de Aleias Altas, Belino Machado, resolveu prestar uma homenagem ao poeta em seu local de nascimento. A colaboração de Belino fazia-se necessária, tendo em vista que, até 11 de fevereiro de 1962, Aldeias Altas era um povoado da cidade de Caxias, tendo, a essa data, vindo a ganhar o título de município. E as matas do Jatobá localizavam-se justamente na área de zona rural compreendida por essa nova cidade.

Para confecção da homenagem, fora escolhido o renomado escultor caxiense Mundico Santos. A ideia era construir um marco a ser instalado, em 3 de novembro de 1964, nas matas do Jatobá, simbolizando o local de nascimento de Gonçalves Dias (àquele ano, já não mais existia nenhum resquício da fazenda, muito menos do imóvel). E assim, na manhã do dia marcado, o totem comemorativo fora apresentado à população caxiense em solenidade realizada na praça Gonçalves Dias. Dalí, a estrutura saiu em comitiva para as matas do Jatobá, onde foi inaugurada na presença de autoridades e populares.

Com a inauguração do marco, os caxienses puderam ter uma noção de onde situava-se o sítio Boavista, local de nascimento de seu ilustre patrício. E dessa maneira, sem alterações, o monumento permaneceu por mais de 30 anos. Até que, no final da década de 1990, a prefeitura de Caxias realizou a doção do antigo busto do poeta que localizava-se na praça, que leva seu nome, para a cidade de Aldeias Altas – haja vista a substituição que seria feita. O monumento fora instalado em uma estrutura de concreto erigida ao lado do marco de 1964 (para ladeá-lo, outro totem idêntico ao de 64 também fora edificado, na ocasião). Posteriormente, o busto fora realocado na Praça Gonçalves Dias, no centro de Aldeias.

Em 2013, quando comemorou-se 190 anos de nascimento de G. Dias, o Instituto Histórico e Geográfico de Caxias (IHGC), através de seu presidente, Arthur Almada Lima Filho, em parceria com a Prefeitura de Aldeias Altas, fixou na estrutura uma nova placa comemorativa. Além disso, substituindo o antigo busto, instalou-se, a pedido do prof. Passinho, uma nova imagem, de dimensões maiores, produzida pelo artista Laylson Coimbra. E assim, seguindo a tradição, sempre que ocorre a comemoração de alguma efeméride relacionada ao poeta, alguma nova inscrição vem a ser instalada na estrutura.

Em 2020, o “Portal Destaque do Maranhão” realizou uma reportagem mostrando o trajeto que leva ao marco do Jatobá no antigo sítio da Boavista, atual Morro da Laranjeira. Na ocasião, foram evidenciadas as condições de abandono em que se encontrava o local. Condições, essas, que, felizmente, foram revertidas com a sua devida revitalização para o bicentenário do ilustre poeta. Assista, abaixo:

Importante notar que, ainda hoje, o acesso ao local não é dos mais fáceis, o que nos leva a pensar nas dificuldades que enfrentaram os pais de G. Dias, há 200 anos, para chegar nessa área. Abaixo, o local do marco, nas matas do Jatobá, em imagens feitas em 2023 pelo fotógrafo caxiense David Sousa:

Atualmente, apesar de não mais existir o imóvel, e por conta do marco instalado, o local de nascimento do poeta vem recebendo excursões de diversos colégios da região, bem como a visita de turistas, universitários e pesquisadores que desejam conhecer um pouco mais sobre as origens do filho ilustre de Caxias.


Fontes de pesquisa: Livro “A Vida de Gonçalves Dias”/Autora: Lúcia Miguel Pereira; Livro “Gonçalves Dias – Coelho Neto”/Autor: Antonio Carlos Medeiros; Livro “O Fim e o Nada”/Autor: João Machado; Quadrinho “O Filho do Norte – Gonçalves Dias, O Poeta do Brasil”/Autor: André Toral; Livro “Efemérides Caxienses”/Autor: Arthur Almada Lima Filho; Jornais “Diário de São Luiz” “O Paiz”; Artigo “Campanha Pró-Imprensa Do Centro Cultural “Gonçalves Dias” Caderno Literário Nº 2: Um Olhar Crítico Para Os Primórdios Do Modernismo No Maranhão”/Autora: Natércia Moraes Garrido; Depoimentos de Joseneyde Vilanova e David Sousa; Youtube

Sálvio Negreiros, o caxiense que foi um dos maiores ilustradores do Brasil

Salvio Correia Lima Negreiros nasceu em Caxias, em 31/08/1924, filho de Alice Correia Lima e Joaquim Negreiros. Tinha mais quatro irmãos: Áurea, Muriel, Júlio e Alberto. O seu pai era um conhecido comerciante de Caxias, sendo proprietário da popular “Casa J. Negreiros” , que localizava-se à Rua Aarão Reis, no centro da cidade.

Desde a infância, o desenho sempre fora a grande paixão do pequeno Sálvio. Começou rabiscando as calçadas com pedaços de carvão, com os diversos desenhos que lhe vinham à cabeça: cavalos, casas, bonecos, aviões etc. As pessoas que passavam por ele diziam: “Coitado! Esse, quando crescer não dará para nada…”. Quando as calçadas já não eram suficientes, acabou enchendo os cadernos da escola com mais e mais desenhos; firmando, pouco a pouco, o seu talento.

Em 1934, surge no Brasil, de propriedade de Adolfo Aizen, a revista Suplemento Juvenil, que foi a primeira publicação brasileira dedicada a quadrinhos de heróis e com personagens famosos das tiras de jornal norte-americanas, como Mandrake – O Mágico, Flash Gordon, Tarzan, além dos desenhos Disney, como Pato Donald e vários outros que fizeram parte da “Era de Ouro dos Quadrinhos”

Em Caxias, um exemplar da Suplemento Juvenil chega às mãos de Sálvio, e logo passa a ser o centro das atenções do jovem. Certo dia, ao folhear a revista, Sálvio deparou-se com um anúncio de um concurso de desenho. Tratava-se de fazer uma história em quadrinhos que tivesse como motivo a “Retirada da Laguna”, o feito histórico do General Camisão. O prêmio: 500.000, 00 réis. Entusiasmado, começou a esboçar o desenho, a idealizar os quadrinhos e a dar forma às figuras. Em pouco tempo estava pronto o trabalho; enviado, logo em seguida, para à redação do Suplemento Juvenil, no Rio de Janeiro.

Algum tempo depois, qual não fora a surpresa? Sálvio – então, com 16 anos de idade – ficara em primeiro lugar no concurso, entre os 25 inscritos, sendo a sua história publicada na edição do Suplemento Juvenil de 12 de junho de 1941. Em Caxias, ao receber a edição da revista, Sálvio não conseguia acreditar no que estava lendo.

Para achar mais incentivo artístico, Sálvio transferiu-se para São Luis. E lá, em 1942, tomou parte no Salão de Pintura com um quadro a óleo, tendo obtido o 2º lugar, ganhando uma medalha de prata.  A sua maior façanha, porém, teve início em 1943, quando Sálvio tinha apenas 19 anos. O episódio ocorreu quando de sua busca ao prêmio da Suplemento Juvenil no Rio de Janeiro, capital da República, à época. Acontece que, a sua viagem foi das mais acidentadas e cheia de episódios pitorescos. O itinerário foi o seguinte: saindo de São luis passou por Teresina, Fortaleza, Crato, Petrolina, Juazeiro, Pirapora, Belo Horizonte e daí para o Rio. Toda essa caminhada foi feita por trem, cavalo, jangadas, carro de boi, caminhão, “gaiola”; enfim, todos os meios de transportes possíveis. E o mais impressionante: tudo isso em 75 dias!

Mas todo esse esforço fora recompensado. Ao constatarem o talento e o esforço do jovem, os dirigentes do Suplemento Juvenil prometeram-lhe, além da premiação em dinheiro, um lugar no Departamento Artístico, tal como haviam feito com as outras pratas da casa, como Fernando Dias da Silva, Celso Barroso e Antônio Eusébio; todos, como Sálvio, vencedores de concursos idênticos.

E assim fora feito. Sálvio, após mudar-se para São Paulo (onde a editora tinha o seu estúdio), desenhou histórias de aventuras para a revista, durante vários anos. Além do trabalho com quadrinhos, Sálvio, através do “Studio Artenova” – da editora carioca de mesmo nome fundada em 1962 -, ficou muito conhecido por suas ilustrações para capas de obras literárias, bem como para o mercado publicitário (Nesse estúdio, Sálvio também era responsável pela direção de arte).

Amigo de Ziraldo, fez parte da primeira geração de quadrinistas brasileiros. “Convém informar aos leitores que eu conheci Fernando, Sálvio e Celso, junto com Monteiro Filho – que são os quatro maiores ilustradores que já apareceram depois na publicidade brasileira”, disse, em 1972, o criador do Menino Maluquinho.

Em 1971, Sálvio volta a residir, junto à sua família, no Rio de Janeiro. Cidade na qual veio a falecer, em 1991, vitimado por um câncer de próstata. O caxiense deixou esposa, filhos e três netos. Um de seus filhos, Carlos Negreiros – que, gentilmente, contribuiu para esta postagem -, seguiu passos semelhantes aos do pai, atuando profissionalmente com Diretor de Arte.


Fontes: Genealogia da Família Correia Lima; Suplemento Juvenil (Diversos Números); Blog Tiras Memory; Wikipédia; Informações cedidas por Carlos Negreiros