A antiga tradição da Malhação de Judas, em Caxias

Judas Iscariotes, que integrava o grupo de apóstolos de Jesus, foi o responsável por entregar Cristo aos soldados que o levaram para ser crucificado. Judas indicou Jesus com um beijo no rosto. Pela traição, o apóstolo recebeu 30 moedas de ouro. Após o ato, Judas entrou em desespero e enforcou-se. Esta passagem bíblica marca um dos maiores casos de traição da história da humanidade.

Um dia antes da Páscoa (celebração da Ressurreição de Jesus), acontece o Sábado de Aleluia, onde é celebrada a Vigília Pascoal, ocasião em que os fiéis cristãos se reúnem em constantes orações durante toda a madrugada que antecede o Domingo de Páscoa. Para a data, fora criado (de maneira não oficial no calendário católico) o ritual da malhação de Judas (também conhecido como “queima de Judas” ou “enforcamento de Judas”), tradição trazida pelos espanhóis e portugueses à toda América Latina.

“Há diversas hipóteses para o surgimento do ritual, uma delas é de que a malhação do boneco tenha origem nas religiões pagãs, a partir de cultos agrários e as festas da colheita. Durante essas ocasiões, o boneco representava uma divindade da vegetação e, por meio do fogo, haveria uma renovação da vida vegetal e garantia de boas colheitas. Esse ritual teria mudado de simbolismo a partir do sincretismo religioso, que unificou muitos rituais pagãos e cristãos ao longo do tempo.” (Trecho transcrito do site Imirante.com).

Em seu modo mais simplificado, o rito consiste na preparação de um boneco de pano, o qual representa o apóstolo traidor, a ser pendurado por uma corda (simbolizando o seu enforcamento), para posterior “malhação” com paus, bem como a sua queima.

Na primeira metade do século XIX, época de D.João VI e D.Pedro I, essa tradição era mais ritualizada e cenográfica, conforme escreveu o pintor francês Jean-Baptiste Debret: “O sentimento dos contrastes, que fecunda tão marcadamente o génio dos povos meridionais da Europa, encontra-se igualmente no brasileiro, caracterizando-se pela capacidade de fazer suceder ao espetáculo lamentável das cenas da paixão de Cristo, carregadas processionalmente durante a quaresma, o enforcamento solene do Judas no sábado de Aleluia.

Compassiva justiça que serve de pretexto a um fogo de artifício queimado às dez horas da manhã, no momento da Aleluia, e que põe em polvorosa toda a população do Rio de Janeiro entusiasmada por ver os pedaços inflamados desse apóstolo perverso espalhados pelo ar com a explosão das bombas e logo consumidos entre os vivas da multidão! Cena que se repete no mesmo instante em quase todas as casas da cidade.(…) E ao primeiro som de sino da Capela Imperial, anunciando a ressurreição do Cristo e ordenando o enforcamento do Judas, que esse duplo motivo de alegria se exprime a um tempo pelas detonações do fogo de artifício, as salvas da artilharia da marinha e dos fortes, os entusiásticos clamores do povo e o carrilhão de todas as igrejas da cidade.

Com o tempo, a tradição foi ganhando tons mais críticos/humorísticos e menos religiosos, conforme preceituou Câmara Cascudo: “Nos sábados de Aleluia rasgava-se um Judas de pano velho, papel e trapos no meio de assuadas. Dizia-se romper a Aleluia. Os Judas eram preparados secretamente e postos em lugares públicos e mesmo à porta de adversários políticos. O sr. Gustavo Barroso recorda que no Ceará fazia-se outrora um júri presidido por pessoa respeitável para julgá-lo. O veredito infalível condenava-o à forca. Na maioria dos casos o Judas trazia o seu ‘testamento’ em versos de pé quebrado, alusivo às pessoas da localidade, com intenções satíricas, políticas e menos humorística.”

Em Caxias, não se sabe ao certo a que ano remonta a introdução da tradição, já que, por não pertencer às datas oficiais do calendário católico, os seus registros quase que inexistem nos jornais da época. As lembranças que sobreviveram ao tempo remontam à década de 1940, sendo a tradição realizada em diferentes bairros da cidade.

Um dos mais famosos e antigos era o realizado no largo de São Benedito, nas imediações da praça Vespasiano Ramos, pelos seus moradores. Proprietário do “Bar Operário”, Herval Lobo era, naquela localidade, o responsável por preparar o boneco. Para tanto, enchia de palha uma roupa masculina, sendo acrescido um chapéu e uma máscara (ou pintura) para formar a cabeça. Para potencializar o espetáculo pirotécnico, Herval adicionava bombas de São João na região das coxas, braços e cabeça do boneco.

Além do Judas, também era redigido um testamento, onde o humor era a característica dominante. Nele, Judas “deixava” aos participantes de sua queima algumas “heranças” humoradas. Com o tempo, os bonecos passaram a servir como um crítica política, onde o Judas, ainda que de maneira não explícita, representava determinado político da época, e o testamento passou a ser endereçado aos demais desafetos.

Na década de 1960, o sr. Simba também ficou famoso por realizar a malhação do Judas à Rua Nossa Senhora de Fátima, em um evento que contava com uma grande presença de adultos e crianças. 

Já no início década de 1980, os responsáveis por manter a tradição no largo de São Benedito foram os clientes do bar “Recanto dos Poetas”, de Arthur Cunha, próximo ao bar do Herval. No memorável Sábado de Aleluia do ano de 1983, Rangel foi o responsável pela confecção do Judas.

Após, fazendo parte da tradição, o Judas foi “roubado”, sendo restituído pouco tempo depois. Conforme o jornalista Vitor Gonçalves Neto, o testamento daquele ano fora redigido pelo “Tales e o filho do Leitão”. Queimado com as bombas, do testamento sobrou apenas as duas humoradas quadras abaixo:

Para facilitar a queima, os clientes utilizaram a matéria-prima do bar: cachaça. Embebido no aguardente, foi fácil para o boneco entrar em chamas, sendo seguido pelas explosões das bombas instaladas em seu corpo. E para finalizar o que ainda restava de sua estrutura, as pauladas não foram poupadas. Não sobraram nem os sapatos para contar história.

Nas décadas seguintes, ainda era possível ver a tradição sendo mantida em alguns bairros da cidade, mesmo que em menor quantidade (a queima chegou a ser realizada em frente ao cemitério dos Remédios). Contudo, as pessoas mais velhas que mantinham viva a tradição foram morrendo e, por consequência, esta fora desaparecendo em Caxias. De tal forma que, atualmente, dificilmente – se é que ainda fazem – se ver esse histórico ritual sendo realizado nas ruas da cidade em Sábado de Aleluia.


Fontes de pesquisa: Sites – Rio de Janeiro Aqui/G1/Imirante; Depoimentos de Sebastiana Guimarães e João Oliveira; Jornal O Pioneiro

Imagens da publicação: Wikipédia; Google Imagens; Jornal O Pioneiro

Restauração e Design das imagens: Brunno G. Couto

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