Quando Luiz Gonzaga pegou “um trem em Teresina pra São Luis do Maranhão”, as coisas não iam muito bem em sua carreira. Considerado algo démodé, nas décadas de 50 e 60, com a chegada da bossa-nova e, posteriormente, da Jovem Guarda, o baião do velho Gonzagão saíra dos holofotes. Foi um duro golpe ao experiente músico.
Contudo, diferentemente das demais regiões do Brasil, o Nordeste nunca abandonara o seu ilustre filho. Sabedor desse prestígio, Gonzaga, nesse período, excursionou, quase que exclusivamente, por cidades nordestinas. Fazendo parte desse itinerário, Caxias fora uma delas. Por contratação realizada pelo próspero empresário Alderico Jefferson da Silva, o músico veio à cidade, na década de 1950, em ocasião do aniversário de um dos negócios do contratante, o “Armazéns Caxias”. O show teve lugar em frente ao estabelecimento, nos arredores da praça Gonçalves Dias. Para hospedar Gonzaga, fora providenciado um quarto nas dependências do “Palace Hotel”, à Rua Afonso Pena.
A proprietária e administradora do hotel era a popular “dona Sinhá Serrath”, apelido de Rosa Amélia de Jesus Serrath. Nascida a 06 de setembro de 1889, poucas informações sobre a sua biografia chegaram aos nossos tempos. Mãe da célebre professora Dacy, d. Sinhá, sempre pitando cachimbo e adornada de joias, comandava aquele hotel desde a primeira metade do século XX. E fora ali, nos cômodos do Palace (amplo casarão colonial de numerosas janelas), que Luiz Gonzaga acomodou sua sanfona e “se arranchou” antes de sua apresentação em Caxias. No local, o músico ainda encontrou tempo para prosear e desfrutar de algumas doses de conhaque. Tudo por conta de Alderico.
Outro amigo e, neste caso, conterrâneo – ambos nascidos em Pedreiras (MA) – de Alderico era o também músico João do Vale. O artista, que já tinha algumas composições suas tocando pelo Brasil (nesse período, João ainda não havia assumido os vocais), fazia visitas recorrentes ao amigo comendador, em Caxias, que o ajudava financeiramente. Assim como Gonzaga, João, quando de suas vindas a Caxias, também passava pelo Palace. E assim, em 1962, narrando um percurso que fazia frequentemente, João do Vale escreveu a canção “De Teresina a São Luis”, onde, além de homenagear o amigo e “mecenas” Alderico, citava d. Sinhá Serrath, conhecida sua de longa data. Para entoar a canção, o escolhido não poderia ser outro: Luiz Gonzaga. Lançada pela RCA, a música é a quinta faixa do LP “Ô véio macho”.
Oficialmente, a canção é composição de João do Vale e Helena Gonzaga, então esposa de Luiz, que também assinou outras oito músicas. Contudo, segundo os entendedores "gonzaguianos", Helena não era compositora. "Era o próprio Luiz Gonzaga o autor das músicas, pois naquela época um artista não podia fazer parceria com outro sendo de gravadoras diferentes por questões de direitos autorais. Daí Helena entrou na jogada e foi nomeada pelo marido como 'Madame Baião'" (Fonte: Blog "Viva o Reio do Baião").Além disso, é muito provável que Luiz Gonzaga não tenha tido envolvimento direto na letra de "De Teresina a São Luis", tendo ficado com a parte de musicar e, posteriormente, gravar o xote. Contudo, esse ponto ainda é muito discutido.
O xote que narra, como o próprio nome sugere, uma viagem de trem entre as duas capitais, faz menção a cinco cidades maranhenses: Caxias, Codó, Coroatá, Pedreiras e São Luis. A estrofe caxiense é a seguinte:
“Bom dia Caxias
Terra morena de Gonçalves Dias
Dona Sinhá avisa pra seu Dá
Que eu tô muito avexado
Dessa vez não vou ficar”
“Seu Dá” era Alderico. Como uma forma de autopromoção, reza a lenda de que a alcunha teria sido disseminada pelo próprio empresário que, ao comercializar os seus produtos, nada vendia, mas dava, de tão baratos que eram. À boca pequena, os seus desafetos chamavam-no de “Seu Toma”.
Ao contrário de “Seu Dá”, que todos sabiam se tratar de Alderico Silva, a outra personagem citada já fora motivo de confusões. Ocorre que, por muito tempo, acreditou-se que a “Dona Sinhá” mencionada na música seria a esposa de Alderico, Dinir Costa e Silva. Um erro até compreensível. Contudo, como vimos, a “Sinhá”, aqui, era outra.
Quando Luiz Gonzaga esteve novamente em Caxias, em 29 de maio de 1966, trazido pelo então prefeito Aluízio Lobo, o músico fez questão de deixar uma dedicatória ao amigo em um livro, de autoria de Sinval Sá, que narra sua história de vida. Na obra intitulada “O Sanfoneiro no Riacho da Brigida”, o músico escreveu: “Ao amigo Alderico Silva, com os cumprimentos de seu cantor, Luiz Gonzaga.” Nesse mesmo show, realizado na praça Vespasiano Ramos, os caxienses puderam presenciar um “Velho Lua” em plena forma, terminando o espetáculo com um recado aos que pensavam que o seu tempo já tinha passado. Fazendo menção à bossa-nova, a plenos pulmões o músico bradou: “A minha bossa eu também já fiz!”.
João do Vale, por sua vez, não parou com as homenagens ao conterrâneo. Até pela proximidade entre as cidades, suas visitas à Caxias eram bastante recorrentes, como destaca esta nota, abaixo:
Ainda na década de 1960, João compôs a música “Vou pra Caxias”. Desta vez, a letra era toda voltada à cidade. Citando as maravilhas naturais e os santos padroeiros, João intercalou o famoso refrão: “Não adianta/Aqui não fico/Vou pra Caxias, onde está seu Alderico. Além disso, a canção citava os dois filhos varões do empresário: Getúlio e Aldenir. Como intérprete, fora escolhido o paraense Ary Lobo.
Por nunca ter sido um bom administrador de suas finanças, João sempre viveu de forma bastante humilde, o que nunca lhe fora um problema. Certa vez, já com a saúde bastante debilitada por um AVC, o compositor foi questionado se havia sofrido muito em sua vida, o que, de pronto, respondeu: “se eu sofri eu não sei, porque eu gostava”.
Na década de 90, pouco antes de seu falecimento, João ainda vinha à Caxias visitar o velho amigo, Alderico, em seu palacete e, de quebra, receber aquele agrado monetário sempre muito bem-vindo.
E como tudo nessa vida passa, os protagonistas dessa história também já se foram. Contudo, como toda obra artística de qualidade, que desconhece a efemeridade, as músicas de João e Gonzaga eternizaram-se no cancioneiro popular. Provando mais uma vez que tudo que é bom sobrevive aos testes do tempo.
Fontes de pesquisa: Jornal do Maranhão; jornal “Folha de Caxias”; Blog “Viva o Rei do Baião”; Wikipédia; Texto “Momento Poética: Luiz Gonzaga, o Rei do Baião/Autor: Edmílson Sanches; Depoimento de Mário Gomes
Entusiasta da história de Caxias e amante da fotografia. Criador da página e do site Arquivo Caxias.
Aquela geração de alegres, boêmios rapazes de que fiz parte – anos 50 e 60 em Caxias, tinha em dona Sinhá Serrate uma de suas “parceiras carnavalescas” mais alegres e queridas. No período, um numeroso “bloco sujo” percorria as ruas e as residências de pessoas amigas, com sua barulhenta alegria. O hotel de dona Sinhá era parada obrigatória para o “reabastecimento” etílico do grupo. Figura alegre e participativa, sempre. Uma das personalidades inesquecíveis daquela Caxias de então.
Parabéns, Brunno, pelo permanente exercício de arqueologia da História de nossa Caxias.
Ante o muuuuuuito que Caxias foi e é, tem e oferece, e o, a meu sentir, pouco que sobre ela se pesquisa e se divulga; ante a inominável indiferença de tidas e ditas autoridades — que usam a cidade mais como retórica política e não a utilizam como realidade histórica de importância e projeção nacionais –, é alimentador ver caxienses (poucos…) que nem você persistindo na luta para pesquisar, documentar e divulgar partes de nosso riquíssimo passado, passado sobre o qual se assentam o presente e as bases do futuro.
Que bom que o passado (re)viva…
…pois em Caxias até as pedras morrem…
*
Grato pela deferência do nosso nome, creditado em alguns de seus textos, ante o interesse e os fatos comuns a que você e eu nos dedicamos.
Abraço.
E, novamente, cumprimentos.
Continue, Brunno — e, no seu tempo, produza o livro (de que me falou seu pai), para o enriquecimento da pouco apoiada Historiografia Caxiense.
Abraço, Conterrâneo.
EDMILSON SANCHES
edmilsonsanches@uol.com.br
edmilson-sanches.webnode.page
Muito obrigado pelas palavras, amigo, Edmílson. Sigamos nesta árdua batalha, que é preservar a história em um país de memória curta!
Meus parabéns pelo trabalho, muito lindo de se ler.
Muito obrigado!
Eu como caxiense,nascida na cidade e cresci entre os primeiros e terceiro distrito até os 27 anos , não sabia das riquezas q a nossa cidade tem ….São vastas histórias que deveriam ser retratada na sala de aula … Pois bem, depois que eu sair do interior povoado São Pedro, terceiro distrito, que eu estou a conhecer a história da nossa,da minha cidade.
Amei ler e viajar no tempo, conhecendo a fundo a história que originou uma música que cresci ouvindo meus pais colocando pra tocar em nossa casa.
Muito obrigada por partilhar conosco.
Caro amigo, mais uma vez é.com grande prazer que leio sobre minha querida Caxias – terra de Gonçalves Dias. Brunno, eu me lembro de D. Sinhá Serrate e do seu famoso hotel. Do seu Da – Alderico Silva – trago boas lembranças, sempre um homem simples -apesar de ser um milionário. Quando você citou o Zé Pretinho eu tbm me lembro. Ele era muito amigo de meus primos Nanô e Zé Reis, filhos de minha tia Ana Reis, que morava na Rua da Pedreira e eles eram jogadores.de bola, como o Zé. O Zé tinha dois parentes que foram meus amigos.na juventude, Compasso e Frederico.
Belas lembranças!