O antigo desejo de um memorial dedicado à Gonçalves Dias #GD200


Em 2023 – mais precisamente, no dia 10 de agosto -, comemora-se 200 anos do nascimento de Antônio Gonçalves Dias. Em virtude de tamanha efeméride, durante este ano, o Arquivo Caxias fará postagens dedicadas a este ilustre filho de nossa terra. Para iniciar essa série, trago a transcrição desta matéria publicada no periódico “Diário de São Luiz do Maranhão”, em 28/04/1945, de autoria de Gentil Silva.

Gentil Homem da Silva Brasil foi prefeito de Caxias por um curto período, entre agosto e setembro de 1941. Seu governo foi tipicamente de transição, enquanto as coisas da política municipal tentavam se acomodar. Em seu texto, que veremos abaixo, o político já chamava atenção para o desprestígio que Caxias conferia ao poeta. Clamando, na oportunidade, após ouvir conselhos de um cidadão caxiense, que fosse criado um museu em sua memória, bem como que fosse reconstruída a fazenda que o poeta nasceu, nas matas do Jatobá.

Infelizmente, como sabemos, nenhum dos projetos foi concretizado até hoje, quase 80 depois! Vale lembrar que, à época da produção do referido texto, a residência a qual Gonçalves Dias cresceu, no centro da cidade, ainda se encontrava de pé; hoje, nem isso…

Segue a integra do texto:

A Casa de Gonçalves Dias

Prefeito municipal de emergência, em Caxias e coincidindo o meu curto período administrativo com a passagem da data do nascimento do maior lírico brasileiro e indianista americano, sentia-me no dever de encabeçar festejos comemorativos do dia 10 de agosto, o que de fato fiz, alma transbordante de satisfação, mau grado as próprias deficiências para ocupar-me do genial e iluminado cantor dos “Timbiras”.

Dispersava-se, a mocidade que acorrera, mais uma vez, às consagrações públicas anualmente tributadas à memória do imortal enamorado da natureza brasílica.

A comissão de festejos, agrupada ainda no local das comemorações, entretém-se em comentários ao êxito da iniciativa, desta como doutras vezes vitoriosa.

Nessa altura, aproxima-se dos presentes respeitável ancião, cabeça alva e descoberta. Era o velho fazendeiro Joaquim Rosa, um dos que acabavam de ouvir discurso e declamações e, algo emocionado, bem se o percebia, pelo numeroso coro de vozes infantis no entoar de vozes infantis da inigualável “Canção do Exílio”, dirige-se ao prefeito:

– Festa bonita, seu coronel…

“Coronel”, sim, porque para o habitante rural do Norte, as autoridades superiores do município, quando não adoutoradas em qualquer coisa ou ramo, tem que fruir ex-ofício, ou compulsoriamente, das vantagens honoríficas que eram concedidas aos antigos oficiais da extinta Guarda Nacional, de saudosa recordação, variando o “posto” segundo a ordem hierárquica e as aparências, no conceito roceiro.

– Eu sabia – continuou Joaquim Rosa – que esta festa ia realizar-se e vim à cidade para assisti-la.

Todos enalteceram a demonstração cívica de Joaquim Rosa que, animado, prosseguiu:

– Se todos os caxienses tivessem a noção exata desta legítima glória, – e apontou a modesta herma do autor do “Y Juca Pirama”, – a sua glorificação não ficaria somente nas homenagens…

E, Joaquim Rosa, reacender com vivacidade o cachimbo sarrento e tirar-se grossa baforada, continuou:

– É isso, e digo com firmeza e convicção. Conheço a obra maior dos poetas brasileiros. Os seus livros eu os adquiri na livraria Laemmert, do Rio de Janeiro, em 1896, por intermédio do meu compadre Trindade Vidigal.

Disse-nos ainda Joaquim Rosa que sabia de cor, além da “Canção do Exílio”, o “Canto do Piaga”, “Tabyra”, “Y Juca Pirama”, “Lenda de São Gonçalo” e outras poesias do grande mestiço brasileiro e as recitava aos netinhos nos serões da família.

– O senhor sabe onde moro?

Como a pergunta fosse para mim, respondi que não poderia atinar. Os meus companheiros entreolharam-se significativamente.

– No 2º Distrito, coronel, pertinho do Jatobá.

Matas do Jatobá, latifundiárias da antiga fazenda do mesmo nome, berço do grande vate americanista.

***

Ao anoitecer daquela mesma data, recebo a agradável visita de Joaquim Rosa, cuja identidade patriarcal, laborioso e honesta me fora revelada pelos meus companheiros de comissão.

Conversamos novamente sobre a vida de Gonçalves Dias, que ele conhece bem. Do mesmo modo conhece o local onde existira a mansão nata do poeta. Lá estão os sinais evidentes da fazenda. O escalvado branco e duro do terreiro; as palmeiras centenárias mais além, cercadas de suas múltiplas descendentes e onde a copa verdejante tecem os seus ninhos os sabiás também imortalizados pelo exímio cantor das selvas.

E dos parentes de Gonçalves Dias, sabe alguma coisa?

– Sim, de alguns tios, primos e sobrinhos, em terceiro grau, talvez; gente muito simples e pobre.

A seguir, Joaquim Rosa volta a aludir aos festejos da tarde. Repetiu, insistindo com certa veemência, que os caxienses poderiam concretizar essas homenagens anuais numa obra que recordasse mais ao vivo e permanentemente, a existência privilegiada do grande Aedo.

A uma pergunta sobre a glorificação imaginada pelo interlocutor, este responde com naturalidade:

– Não erguem-se templos aos taumaturgos?

Compreendi o que o velho sertanejo tentava formular uma analogia de cultos. E, para logo veio-me a lembrança do pavilhão envidraçado que o civismo bandeirante fez construir sobre o rancho de tábuas e zinco, onde Euclides da Cunha escrevera a epopeia de “Os Sertões”. Recordei-me também num instante, a “Casa de Ruy Barbosa”, onde os visitantes se emocionam ante a visão eterna do grande brasileiro.

Joaquim Rosa tem razão.

Porque não adquirir-se a propriedade do Jatobá, reconstituindo-se ali a casa de nascimento do poeta, como lembrança afetuosa e terno do autor das “Sextilhas de Frei Antão”?

A sugestão parece-me das mais aproveitáveis em virtude não somente do desenvolvimento espiritual que nos vai conduzindo a melhor e mais elevada compreensão estética, mas, também, encarado o assunto, se o quiserem, pelo seu lado realístico e utilitário.

É velha e justa a aspiração dos caxienses, o aproveitamento científico e industrial das águas termais de Veneza. Realizado que seja, esse importante empreendimento, poderiam concomitantemente concluídos os trabalhos de reconstituição do Jatobá a qual, de certo converter-se-ia num ponto obrigatório de turismo, atraindo ao velho município sertanejo, berço de tantas outras glórias nacionais, as elites da intelectualidade e da abastança brasileiras.

Então, poderá ser ali apreciado o ambiente simples e sugestivo da antiga mansão rural onde Gonçalves Dias abriu os olhos pela primeira vez, deu os primeiros passos e impregnou a alma juvenil da radiosa claridade de infinitos horizontes, do sonoro rumor das suas florestas, da música sutil e encantada dos passarinhos e do verdor mágico das várzeas acolhedoras.

Foi ali, entre tímido e contente das palmeiras, ainda pequeno, recebeu as impressões sadias, fortes e indeléveis das danças indígenas, ao ritmo das tabas e maracás.

Foi ainda lá, nas noites enluaradas que ele ouviu a história misteriosa dos “Piágas”, das lutas de tribos guerreiras, dos amores e conquista que serviram de motivo à sua futura e monumental obra de brasilidade que o mundo tanto enaltece e admira.

Poder-se-á organizar o Museu Gonçalviano, em ambiente apropriado, arrecadados os seus manuscritos e todas as demais relíquias que possam recordar a pessoa e a obra imortal americanista.

Trazendo à letra de forma o pensamento de Joaquim Rosa, estou que nenhum maranhense deixará de o aplaudir com calor.

Gentil Silva

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