O “Bar Operário” de Herval Lobo

Toda cidade que se preze, especialmente as interioranas, tem um bar de estimação. Popularmente conhecidos como botecos ou bodegas, estes estabelecimentos são o ponto de encontro dos apreciadores do popular líquido estritamente vedado aos passarinhos. Verdadeiras “confrarias da boemia local”, ali, entre um golada e outra, muitas amizades são formadas, brigas são apartadas, as pazes são seladas, apostas são firmadas e – mais frequentemente – mentiras são contadas. Não necessariamente nessa ordem.

Fazendo parte desse rol, em Caxias, o “Bar do Herval” é, sem dúvidas, um dos mais lembrados pelos saudosistas. Mas, antes de falar sobre o bar, em si, discorramos um pouco sobre o seu proprietário.

Vindo de uma tradicional família caxiense, Herval Lobo e Silva (muitas vezes o seu nome é grafado sem o “H”) nasceu em Caxias, no dia 08/07/1911. Fruto da união de Libânio Filho com d. Bezina, Herval era neto do conhecido coronel Libânio Lobo. Tinha mais três irmãos, Joacir, Waldemar e João Lobo. De sua juventude, quase nenhuma informação chegou aos nossos dias. Sabe-se que, seguindo o tino comercial do irmão, João (proprietário da “Casa Matoense”), Herval decidiu abrir um negócio, mais modesto e menos ambicioso. E assim, sob o nome de “Bar e Mercearia São José Operário”, Herval inaugurou o seu estabelecimento.

A data de sua fundação é incerta. O seu primeiro anúncio publicitário, que se tem notícia, data da segunda metade da década de 1940, levando à conclusão de que seja essa a data aproximada de sua inauguração. Funcionando em amplo casarão de estilo colonial, na esquina do antigo Beco da Estrela com a Rua Afonso Pena, o estabelecimento tinha sua fachada virada para a praça Vespasiano Ramos. O nome do bar ficava posicionado em uma placa de vidro, iluminada de dentro para fora, com luz de lâmpadas fluorescentes. No meio da placa, em tintas coloridas, o busto pintado de São José, segurando, com uma das mãos, o menino Jesus, e vários lírios brancos, na outra mão. Logo abaixo da imagem, o nome de Herval.

Herval, ou “Seu Herval” para os menos íntimos, era um comerciante agoniado. Andava, no bar, de um lado ao outro, quase sem parar. Por uma deficiência em uma das pernas, arrastava um dos pés. Dias, estava falador, comunicativo; dias, estava mais calado, pensativo. Quando estava nervoso, apresentava gagueira. Não muito vaidoso, quase sempre as suas camisas estavam abertas na altura da barriga, e os cabelos (as vezes, curto;, as vezes, mais longos) desalinhados – na década de 1980, chegou a cultivar uma longa barba. Quando não estava com um toco de charuto no canto da boca, ficava mascando fumo bruto e, minuto a minuto, cuspindo o sumo do tabaco em uma caixinha cheia de terra, que ficava na parte interna do extenso balcão de madeira.

Além do bar, no local também funcionava uma mercearia e um restaurante improvisado. A freguesia, além da vizinhança, era composta por pessoas que vinham de longe para comprar mantimentos de primeira necessidade, tendo em vista a diferença de preços. “Herval visava o menor lucro e mais fregueses. Foi o pioneiro na venda de conservas. Começou, vendendo massa de tomate, sardinha, leite condensado e goiabada, os primeiros enlatados fabricados no Brasil e conhecidos em Caxias”, relembrou o saudoso escritor Firmino Freitas, em seu livro de memórias.

Firmino também relembra como era o bar em dias festivos: “O bar, além das novidades trazidas, em primeira mão, para Caxias, tinha utilidade de agenda, isto é, funcionava como calendário. Todas as datas eram lembradas de uma maneira ou de outra. O Carnaval era lembrado com máscaras, feitas de pedaços de jornal colados com grude de tapioca sobre fôrma de barro, por uma senhora da Rua da Estrela, e vendidas a preços módicos; a Semana Santa, pelo bacalhau norueguês importado em barricas ou caixas de madeira, (…) que era pendurado em uma das portas, qual bandeira; o Natal, pela venda de bolas de borracha e pequenas bonecas de baquelita, de celuloide ou de pano com cabeça, pés e mãos de porcelana. No período das festas juninas, eram lembrados com venda de traques, bombas de várias potências de explosão, trepa-moleques, espanta-moscas (…)”.

No Sábado de Aleluia, era Herval o responsável pela fabricação do boneco do Judas que viria a ser malhado na praça em frente. Quando dos festejos de São Benedito, Herval tirava mais mesas do depósito, e as colocava na parte de fora do bar, na calçada e no calçamento de pedra bruta, no lado que dava para o largo da festa.

O fregueses do Bar Operário pertenciam as mais diversas classes sociais e profissionais. Como bem definiu um de seus habitués, Enoch Torres da Rocha: “Era o ponto de encontro dos P.P.S. (Pinguços, Poetas e Simpatizantes). Em suas democráticas mesas sentaram diversos empresários, comerciantes, poetas, políticos, intelectuais ou simples pinguços contumazes. Mesas, essas, de um pé só, um pé central em cruz para manter o equilíbrio, feitas de cedro com polimento escuro e ornadas com tampo de vidro pintado com o nome do bar ou com propagandas das outras casas comerciais existentes. Dentre os caxienses que passaram por aquele balcão, destacam-se: Nachor Carvalho (industrial), Acrísico Cruz (jornalista e poeta), Leôncio Magno (professor e jornalista), Nanito Souza (comerciante) etc… Homens que, após mais uma jornada de trabalho, passavam no bar para bater papo e tomar um “digestivo”, abrindo, asism, o apetite para mais um tira-gosto.

“Para o tira-gosto, não faltava no balcão-vitrina, uma leitoa assada inteirinha, com maçã na boca e azeitonas nos lugares dos olhos. A leitoa, tipo pururuca, era colocada em uma grande bandeja, ornada com rodelas de cebola, tomate e limão, e a indispensável farofa, gorda, corada com corante de urucum ou açafrão. Não se sabe se a cerveja gelada, “véu-de-noiva”, era o chamariz, ou as leitoas e os capões assados é que atraiam os fregueses para o bar, diariamente, depois do expediente dos escritórios e de parte do comércio do centro da cidade” (Memórias de Firmino Freitas).

Além dos adultos, a criançada também era presença constante no Bar Operário (com o tempo, o estabelecimento teve o seu nome encurtado), quer fosse para comprar os mantimentos para casa, quer fosse para comprar guloseimas e picolés. Os picolés de Herval eram uma atração à parte. Além dos picolés de juçara, coalhada, cajá e imbu; eram vendidos os de sabor morango, que, segundo relatos, eram pura anilina azeda, com o cheiro enjoativo. O mais vendido era o de coco, feito com bagaço e tudo – não se sabia se estava comendo ou chupando o picolé. Apesar dessas ressalvas, os picolés de Herval – talvez pela falta de opções – faziam sucesso entre a garotada.

Já na década de 1990, com mais de quarenta anos em funcionamento, Herval ainda era o responsável pelo Bar Operário. Muito trabalhador, levantava, diariamente, às 5h da manhã. Ritmo de trabalho que foi ficando cada vez mais difícil de manter, afinal, já contava com mais de oitenta anos de idade. “[Herval] Reclamava, sempre e sempre, de dores no corpo e de um incômodo que lhe causava uma hérnia no abdômen, além de frequente dor de cabeça; As dores eram denunciadas pelo mau humor; a hérnia, pela protuberância que dias estava menor, dias de visível aumento” recordou Firmino, cliente e amigo de Herval.

Ainda assim, Herval manteve o seu estabelecimento em funcionamento até próximo ao seu falecimento, ocorrido em 23/04/1995, aos 83 anos de idade. Não deixou descendência. Após a sua partida, o Bar Operário também encerrou suas atividades e o casarão passou a abrigar diversos estabelecimentos, em sua maioria bares e restaurantes. Atualmente, o imóvel, que ainda conserva parte de suas feições originais, abriga uma farmácia.


Fontes de pesquisa: Livro “Festejos de São Benedito”/Autor: Firmino Antônio Freitas Soares; Depoimento e arquivos cedidos, gentilmente, por Wilton Lobo; Livro “Por Ruas e Becos de Caxias”/Autor: Eziquio Barros Neto

Imagens da publicação: Ac. do IHGC; Jornal “O Cruzeiro”; Ac. de Wilton Lobo; Internet

Restauração, Colorização e Design das imagens: Brunno G. Couto